Fonte: Jornal da Besta Fubana
JOÃO BATISTA DE SIQUEIRA (CANCÃO)
João Batista de Siqueira, poeta popular mais conhecido por Cancão, nasceu em São José do Egito, a 12/05/1912. Em 1950, deixou de participar de cantorias de viola e dedicou-se apenas à poesia escrita. Sua obra já foi classificada pelos críticos como uma versão popular à poesia de poetas românticos como Castro Alves, Fagundes Varela ou Casimiro de Abreu.
Freqüentou a escola por pouco tempo (”não cheguei ao segundo livro”) e foi, também, oficial de Justiça em sua cidade, onde morreu a 05/07/1982. Livros publicados: “Meu Lugarejo”, ”Musa Sertaneja” e “Flores do Pajeú”. Folhetos de Cordel de sua autoria: “Fenômeno da Noite”, “Mundo das Trevas”, “Só Deus é Quem Tem Poder”.
A CASA DO ÉBRIO
Era um casebre tristonho
De cujas paredes tortas
Vinha o rangido enfadonho
Dos gonzos de duas portas
As telhas já nodoadas
Duas roletas deitadas
Numa camarinha escura
O vento, quando passava
Parecia que falava
Nas frinchas da fechadura
Na parede do nascente,
Um banco desmantelado
Um garrafão de aguardente
Que ainda havia sobrado
Junto ao quarto de dormida
Cera que foi derretida
Do resto de algumas velas
No chão, marcas de escarros
Cacos de vidro, cigarros
Rolavam por cima delas
Uma rede remendada,
Outra parte descosida
Em um torno pendurada
Pela fumaça tingida
De um lado, havia um cambito
Onde o couro de um cabrito
Sobre um arame pendia
Mais adiante, um jirau
Junto à travessa de um pau
Onde um morcego vivia
Uma corda, uma rodilha
Bem acima de um caixão
Um pote, numa forquilha
Vazava junto ao fogão
Um gato cego e doente
Deitado sobre um batente
Por certo sentia sono
De fora, um jumento olhava
O seu olhar revelava
A malvadez de seu dono
Uma vara de ferrão,
A banda de uma tigela
Meio quilo de sabão
Embrulhado dentro dela
A banda de um cobertor
Atada em um armador
Onde havia um candeeiro
Uma camisa de saco
Mostrava por um buraco
A tampa dum tabaqueiro
Uma cadeira quebrada
As pernas de um tamborete
Uma foice enferrujada
Encabada num cacete
Ao lado de uma cangalha
Havia um chapéu de palha
Com um remendo de pano
Um tronco de mandioca
E um anzol numa taboca
Pra pesca do fim do ano
Havia armado um quixó
Encostado a um baú
Costurado com cipó
Todo feito a couro cru
Num recanto separado
Se conservava embrulhado
O braço de uma viola
Zelava por tradição
Que seu pai foi campeão
De cantar pedindo esmola
Uma calça de azulão
Perto da porta do meio
A bainha de um facão
Balançava em um esteio
Numa mesinha na sala
Havia cascas de bala
Um bisaco e uma garrucha,
A manga de um paletó
E um galho de mororó
Guardado pra tirar bucha
Cinco ovos de galinha,
Um punhado de limão,
Uma cuia com farinha
Sobre a boca de um pilão
Uma rolinha pelada
Numa gaiola quebrada
Junto à porta dormia
Em frente, um cão cochilava
Com certeza decorava
Sua cruel profecia
Um pedaço de perneira,
Um serrote e uma enxó
Tudo dentro duma esteira
Amarrada em um cipó
Um candeeiro sem asa
E num recanto da casa
Quatro cartas de baralho
Em um barbante, num prego
Atado por um nó cego
Estava preso um chocalho
A canela de um veado,
Uma ponta de carneiro,
Em um gibão amarrado
Um facho de marmeleiro
Em frente havia um baú
Só feito de couro cru
Bem apoiado no chão
Sobre sua tampa aberta
Mostrava uma prova certa
Donde guardava o carvão
Abaixo de um travesseiro
Um pouco de sola em dobra
Dada por um curandeiro
Pra mordedura de cobra
Mais um cachimbo de barro
Que o mau cheiro do sarro
Chegava até o caminho
Em um recanto, num banco
Um sapato preto e branco
Que recebeu de um padrinho
Muitas formigas pequenas
Umas vinham, outras iam
E assim muitas centenas
Entre os torrões se escondiam
Duas varas emendadas
Numa parede pregadas
Quase na forma dum ‘vê’
Se o vento passava, vinha
Do terreiro ou da cozinha
Um cheiro não sei de quê
Uma criança chorava
Juntinho da mãe doente
Que com esforço lhe olhava
Mas já com ar diferente
O rosto banhado em pranto,
Deitada sobre um recanto
Numa parede encostada
A face triste e sombria
Que durante aquele dia
Não tinha comido nada
Depois, um homem barbado
Entrava cambaleando
Num andar lento e pesado
Exasperado falando
Um ferimento num braço
Se ia aumentar o passo,
Botava a mão na parede
Sorria e depois chorava
Pelos seus traços mostrava
Sinais de quem tinha sede.
* * *
MANHÃ DE CHUVA
As andorinhas no rio
Passam baixinho voando
Como crianças brincando
Num lago vasto e sombrio
O mangueiral do baixio
Sente a chuva, estende a rama
No chão, a verdosa grama
Se serve do mesmo orvalho
Que o vento, agitando o galho
A folha treme e derrama
Do sopé da cordilheira
As pequeninas correntes
Se despenham diligentes
Em busca da cachoeira
O xexéu, na aroeira
Olha toda a redondeza
Diante tanta beleza
Se sente todo encantado
Pensa ser o namorado
Mais fiel da Natureza
Dentro do bosque cerrado
A vegetação cochila
Levanta a fronde tranqüila
Sentindo o tronco lavado
Dentro do emaranhado
Que à tarde a sombra rodeia
A ema, lenta, passeia
Em um constante arrepio
Já enfadada do frio
Que a mão da brisa semeia
Passa perto da palhoça
Um boi em lentas passadas
Fazendo as suas pisadas
No balanço da carroça
Vai a tabaroa à roça
Em um ar aborrecido
No caminho mais seguido
Buscar água no regato
Se defendendo do mato
Pra não molhar seu vestido
Caminha o rebanho lento
Do arvoredo vizinho
À procura do caminho
Do planalto lamacento
No campestre friorento
A planta alegre se agita
A flor sorri e palpita
Sentindo os ventos medonhos
Lá dos recantos tristonhos
Que o gênio da sombra habita
O vento passa maneiro
Pelo campo rosciado
Fingindo um céu esmaltado
Coberto de nevoeiro
Na baixada, o ingazeiro
Sente vigor, se renova
Como nos dando uma prova
Se mostra todo florido
Entre o multicolorido.
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