Foi num folheto de gracejo que Ariano Suassuna encontrou o personagem-símbolo de sua dramaturgia. As Proezas de João Grilo (ver trecho abaixo), história escrita em 1932 por João Ferreira de Lima, trazia como protagonista o célebre amarelinho oriundo dos contos populares portugueses, que, no processo de aculturação, ganhou características idênticas às de outro famoso espertalhão de origem ibérica: Pedro Malazarte. Esse mesmo João Grilo será reaproveitado no Auto da Compadecida, transformado em filme em 2000 por Guel Arraes, com Mateus Nachtergaele (João Grilo) e Selton Melo (Chicó) nos papéis principais.
João Grilo foi um cristão
que nasceu antes do dia,
criou-se sem formosura
mas tinha sabedoria,
e morreu depois da hora
pelas artes que fazia.
(...)
Na noite que João nasceu,
houve um eclipse na lua,
e detonou um vulcão,
que ainda continua.
Naquela noite correu
um lobisomem na rua.
(...)
Entretanto, a Compadecida se baseia em três folhetos distintos, dois deles escritos por Leandro Gomes de Barros. O primeiro é O Cavalo que Defecava Dinheiro, que mostra como um finório consegue lograr um duque invejoso convencendo-o de que um cavalo é realmente capaz de obrar (sem trocadilho) o prodígio do título. Obviamente quem assistiu à peça ou à uma de suas versões para o cinema, sabe que o cavalo foi transmutado num gato, por motivos mais que compreensíveis. O outro poema de Leandro reaproveitado por Suassuna é O Dinheiro (O Testamento do Cachorro), onde aparecem as figuras do padre e do bispo. A autoria de Leandro é inquestionável, embora a origem dos motivos que compõem a estória seja mais difícil de rastrear. O próprio Ariano reconhece essa dificuldade quando afirma: “- a história do testamento do cachorro, que aparece no Auto da Compadecida, é um conto popular de origem moura e passado, com os árabes, do Norte da África para a Península Ibérica, de onde emigrou para o Nordeste”.
Além destes dois poemas de caráter marcadamente cômico, o Auto propriamente dito – a última parte – tem por base o folheto O Castigo da Soberba, de autoria desconhecida, embrora alguns atribuam-na a Silvino Pirauá de Lima. A história tem a marcante presença do imaginário medieval que impregna a obra de Gil Vicente, outra evidente fonte de Suassuna. Maria (Nossa Senhora) é a advogada. Jesus o Juiz, e o Diabo o acusador. É a Nossa Senhora – a “advogada nossa” da oração Salve Rainha – que a alma recorre, em vista da iminente condenação. Evocada em nome de seu bendito filho, ela responde à súplica da alma. No final, após ouvir acusação e defesa, Jesus – no folheto também chamado Manuel – decide pela salvação da alma. O Diabo (Cão), vencido, chama os seus comandados. A estrofe abaixo reproduzida, com a última fala do tinhoso, está bem próxima do desfecho do Auto da Compadecida:
Vamos todos nós embora
Que o causo não é o primeiro,
E o pior é que também
Não será o derradeiro...
Home que a mulher domina
Não pode ser justiceiro.
Os três folhetos, diga-se de passagem, foram coligidos por Leonardo Mota no livro Violeiros do Norte. Indiretamente, este pesquisador cearense, ao reunir as três obras em seu precioso estudo, apontou o caminho que Ariano Suassuna deveria seguir, mesmo apoiando-se em outras tradições populares – especialmente o Bumba-meu-boi, onde os personagens Mateus e Bastião cumprem um papel semelhante ao de João Grilo e Chicó na Compadecida.
João Grilo marcou presença em outros folhetos de cordel, com destaque para O Professor Sabe-Tudo e as Respostas de João Grilo (de Klévisson Viana), A Professora Indecente e as Respostas de João Grilo (de Arievaldo Viana, João Grilo, um presepeiro no palácio (de Pedro Monteiro) e Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo (de Marco Haurélio). O sucesso do Auto da Compadecida no cinema parece ter motivado o diretor Moacyr Góes a filmar O Homem que desafiou o Diabo (2007), baseado no livro As Pelejas de Ojuara, de Nei Leandro de Castro, que, por sua vez, parte de folhetos de cordel do ciclo do Demônio Logrado.
Fonte: Cordel Atemporal: marcohaurelio.blogspot.com
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