O cordel não tinha perna, não andava nesse chão, se não fossem as proezas de Padim Ciço e Lampião. Esses dois cabras da peste, cada um com sua veste, vestiram o imaginário do povo, desde o sertão ao agreste, como o mais puro Nordeste.
De mil cordéis mais de cem, se não for ainda além, distribui o seu vintém para falar de alguém que é Padim Ciço ou Lampião. Sem faltar muito motivo, o cordelista a seu crivo dos dois vai mostrando a sina, cata de um a batina e do outro a coragem canina. E depois chama os dois, faz pegar mão na mão e manda a igreja e o cangaço caminharem no sertão.
Sobre o Padim Ciço já disse Arievaldo Vianna: "É o pastor do romeiro/ Nesse sertão nordestino/ Conduzir as multidões/ Na terra foi seu destino/ Sempre mostrou vocação/ Já gostava de oração/ No seu tempo de menino (...) Embora não seja santo/ Perante a Cúria Romana/ O povo diz que ele é/ E seu poder inda emana/ Pois não é ditado novo:/ Dizem que a voz do povo/ É de Deus e não se engana/ Romeiros chegam a pé/ De carro ou de avião/ No túmulo do Padre Cícero/ Fazem a sua oração/ Visitam seu monumento/ Pedindo a todo momento/ Sua bênção e proteção".
Lampião vem ao seu lado, num cordel mais que arretado de Gonçalo Ferreira da Silva: "No limiar deste século/ houve o recrudescimento/ do cangaço no nordeste/ com o aparecimento/ de Lampião, entre todos/ talvez o mais violento/ Quando dizemos talvez temos medo de engano porque o homem do campo, o pesquisador insano/ mostraram de Lampião/ seu lado bom e humano/ Só por Lampião ter sido/ muito voluntarioso/ por ter tido, já adulto/ a fama de corajoso/ não eram razões concretas/ para se tornar criminoso".
Verdade é que os dois são como feijão e arroz, se tira um bota o outro e não percebe o que se pôs, mas isso na poesia, pois no outro dia-a-dia, Padim Ciço era a política e Lampião a valentia. Como o cangaço foi religião no sertão, um dia o religioso mandou convidar seu irmão para ir a Juazeiro e lá se tornar Capitão.
Isso foi em 1926, de março o início do mês, quando chega um mensageiro dizendo a Lampião para seguir pro Juazeiro, para tratar de assunto urgente e verdadeiro. E quem lhe mandava chamar pra uma importante missão não era qualquer mandão, mas muito mais do que isso, o Padim Ciço Romão, religioso e político, homem de batina e mosquetão, mandando no Ceará e muito mais na região.
Padim Ciço disse ao homem que sabia de boca e vão tudo que ele fazia nas caatingas do sertão, mas tinha uma missão e se ele aceitasse além de se tornar Capitão teria o seu perdão. Lampião bem que aceitou, não podia rejeitar, pois era a oportunidade do banditismo deixar, já tinha pensado nisso e agora era o lugar. Mas pelo que a história conta isso ficou no sonhar, pois a Coluna Prestes ele não foi atacar.
Mas antes de retornar, agora com tal missão, Lampião disse ao Padim que queria confissão, precisava confessar a vida a lhe atormentar, o mal que havia feito e o que estavam a lhe acusar, para deixar tudo certinho, sem nenhum pecado faltar. E contam que Padim Ciço, já cabreiro desse pranto, chamou o Capitão num canto e se puseram a conversar, com Lampião contando tudo e Padim Ciço a chorar.
Chegou num certo momento, que mesmo no juramento, Lampião foi perguntar por que o homem chorava tanto assim de se acabar. E parando de soluçar, Padim Ciço outras coisas começou a relatar, dizendo que tinha inveja do outro a bandidar, que fazia a mesma coisa se pudesse se largar, deixar tudo na igreja e na política sustentar, pois era o único meio de fazer mundo danar, fazendo brutalidade e de cada inimigo vingar.
Então Lampião se lembrou de um assunto já ouvido, dizendo que Padim Ciço era mais que decidido e fazia da igreja um verdadeiro partido, trocando hóstia por voto, ameaçando devoto que lhe fizesse desfeita, que era pender pro outro lado do partido da direita. E pra ideia não ter sumiço perguntou ao Padim Ciço se ele era de rebuliço ou o inimigo inventava.
E Padim Ciço respondeu que era por isso que chorava, pois já não mais agüentava fingir tanto pros fiéis, pois tinha outros papéis que não podia esconder, que era sempre fazer ver o inimigo morrer, a governança lhe obedecer e ele reinar para sempre e toda força merecer. E pra não fugir do seu plano brigava até com o Vaticano e que dirá com um sicrano.
E segredou a Lampião o que deveria fazer pra matar e não morrer, pra sofrer sem padecer, pra ser bandido e querido, bastando ser como ele, ora do lado dos ateus, ora aos pés de Deus. Pois aquele, disse ele, que vive nesse sertão, não adianta ser querido se o outro lhe vê um bandido.
E o Capitão deu a benção e não olhou atrás não, seguiu direto pro mundo, pro seu imenso sertão, achou que mudar sua sina era virar lamparina e preferia o Lampião.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Autor: Rangel Alves da Costa*
Fonte: cangacoemfoco.jex.com.br
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