Pessoal vasculhei a internet e quase não encontro esta obra que é uma nas quais Ariano Suassuna se baseou para elaborar a peça "Auto da Compadecida". Ainda bem que as amigas Aline da Rosa Alves e Juliana Apolo da S. M. Lopes a anexaram em sua monografia “Auto da Compadecida em Hipermídia”, e disponibilizaram para o grande público. A partir do citado trabalho reproduzo abaixo esta tão majestosa obra:
Agora
eu passo a contar
Do
que houve em algum tempo:
O
Castigo da Soberba,
Que
ficou para exemplo,
Foi
um caso acontecido,
Não
é coisa que eu invento.
Era
um homem muito rico,
Tinha
honras de Barão,
Tinha
vinte engenho de ferro,
Em
metal trinta milhão,
Doze
mil vacas paridas
Nas
fazendas do sertão.
A
mulher deste Barão
Tinha
honras de rainha,
Sessenta
e cinco criadas
Para
lhe servir na cozinha,
Parecia
inda mais bela
Pelos
cabelos que tinha.
Com
vinte anos de idade
Ele
tomou novo estado,
Aumentou
o cabedal
Adespois
de ter casado,
Que,
antes de interar dez anos,
Sete
vez havia herdado.
Bem
conhecido e falado
Dos
mais homens brasileiros,
Tanto
por bens de fortuna
Como
em crédito de dinheiro,
Mas
não tinha nem um filho
Para
dele ser herdeiro.
Era
grande no respeito
Pelos
bens que possuía...
Se
era grande na riqueza,
Maior
era em fidalguia
E,
se era grande em nobreza,
Maior
era em soberbia.
Seus
cinqüenta anos de idade
Tinha
ele já contado,
Tinha
vinte de solteiro,
Tinha
trinta de casado,
Esperança
de ter filho
Já
estava desenganado.
Quando
interou cinqüenta anos,
Deu-se
um certo movimento:
Seus
bens, sem se saber como,
Se
acabavam num momento,
Era
como ridimunho
Ou
tempestade de vento.
No
campo os bichos de folgo
De
repente se acabavam,
As
plantações que fazia
Nasciam
mas não vingavam,
Dinheiro
que desse juro
Nunca
mais lhe pagavam.
Não
se passou muito tempo,
Acabou-se
a tal grandeza:
Olhe
o pobre acabrunhado,
Carregado
de pobreza,
Desprezado
dos amigos
Em
quem contava firmeza!
Caiu
a mulher doente,
Bastante
desabilitada,
Desprezada
das amigas,
Por
quem era visitada,
No
meio desse desprezo
Apresentou-se
pejada.
Foi-se
aproximando o dia
Que
deu à luz o filhinho:
Nasceu
em tanta pobreza
Que
enrolou-se em mulambinho,
Por
sua grande miséria
Foi
difice achar padrinho.
Criou-se
sem ir à Missa
E
nunca se confessou,
Pôs
os pés na santa Igreja
Só
quando se batizou,
Negócio
de penitência
Ele
nunca procurou.
Esmola
por caridade
Isso
nunca que ele deu;
Deitava
e se levantava,
Porém
nunca se benzeu;
Viveu
assim, deste gosto,
Té
o dia em que morreu.
Logo
assim que ele morreu,
Cobriu-se
os montes dum véu,
Mas
a alma como invisive,
Chegou
às portas do céu,
Em
tristeza amortalhada
Para
dar contas de réu.
Mais
de doze mil demônios
Tudo
isso lhe acompanhavam,
Uns
se rindo, outros soltando
Gargalhadas
que rolavam,
Todos
eles muito alegres
Da
certeza que levavam.
-“Ô
divino São Miguel,
Vosso
nome escularêço,
Valei-me
nesta agonia,
Nestas
pena em que padeço!”
São
Miguel arrespondeu:
-
“Alma, eu não te conheço!”
-
“Vala-me o Senhor São Pedro
Por
ser Apóstolo primeiro,
Foi
quem recebeu as chaves,
Que
do céu é o chaveiro,
É
quem pode ver as faces
Do
nosso Deus verdadeiro!”
-
“Alma, eu te abro a porta
Porque
tu me vem rogar,
Porém
não tenho poder
Pra
fazer-te aqui ficar...
Tu
recorre a Jesus Cristo
Que
é quem jeito pode dar.”
Abriu-se
as portas do céu,
A
alma viu toda a alegria,
Também
viu Nossa Senhora,
Jesus,
Filho de Maria,
Para
Quem não pôde olhar
Pelas
culpas que trazia.
Curvou-se,
beijou-lhe pés,
Felizmente
Ele aceitou...
-“Me
acudi, meu doce Pai,
Valei-me,
Nosso Senhor,
Sempre
vejo vos chamar
Refúgio
dos pecador!”
-
“Arretira-te, alma ingrata,
Vai
para donde tu andaste,
Que
a santa Religião
Tu
nunca que procuraste:
Te
dei trinta e quatro anos,
Nunca
de mim te lembraste.”
-
“Ai, Senhor, por piedade,
Tenha
de mim compaixão,
Pelo
dia em que nasceu,
Por
vossa Ressureição,
Por
aquele grande dia
Da
vossa Morte e Paixão!”
(Cão)
– “Isto era o que faltava:
MANUEL
padeceu as dor,
E
tu reza e caridade
Nunca
fez por seu amor,
Confissão
e penitença
Tu
toda vida abusou.”
(Jesus)
– “Alma, tu bem estás ouvindo
Esta
grande acusação,
Eu,
até pra defender-te
Não
vejo um pé de razão,
Abre
a tua consciência,
Faz
a tua confissão.”
(Cão)
– “Isso é só tempo perdido,
Não
tem ele o que dizer,
Pois,
enquanto andou no mundo,
Só
tratou de te ofender,
Nunca
lhe veio à lembrança
Que
ainda haverá de morrer!”
(Alma)-
“Ai, Senhor, se compadeça,
Nunca
a vós eu quis servir,
Não
sei mesmo o que vos diga
Pois
não vos posso iludir
E
me vejo na presença
De
Quem não posso mentir.”
Disse
os demônio duns pros outros:
-
“Boa confissão aquela!
Agora
queremos ver
Essa
alma pra quem apela...
MANUEL
é reto e justo,
Nós
hoje carreja ela!”
(Jesus)
– “Alma, pelo que me dizes
Eu
não posso te valer:
Tu
me viste morto de fome,
Não
me deste de comer!
Tu
me viste morto a sede,
Não
me deste de beber!”
“Eu
estava muito mortal,
Tu
não foste visitar;
Tu
me viste na cadeia,
Não
foste me consolar;
Quando
eu te vi errado,
Te
mandei aconselhar.”
“Assim
agora, alma ingrata,
Vai
cumprir teu triste fado,
Que
tu não fez pela vida
De
purgar os teus pecado,
Na
minha Glória só entra
Coração
purificado.”
(Alma)
– “Vala-me, ó Virgem Maria,
Pelo
vosso resplandor,
Pelo
dia em que nasceu
Pelo
nome que tomou,
O
nome do vosso filho
Que
no ventre carregou!”
(Maria)
– “Alma, já que me chamaste,
Na
presença te cheguei,
Tu
falaste com fiança
Neste
nome que eu tomei,
No
nome do meu filhinho
Que
no ventre carreguei.”
(Alma)
– “Ai, Senhora, Virgem Pura,
Padroeira
mãe dos home,
Valei-me
nesta agonia,
Nesta
sorte que consome,
Sempre
vejo protegido
Quem
recorre a vosso nome.”
(Cão)
– “Como ele está com ponta
Só
pra iludir Maria,
Com
tantos anos de vida
Nome
dela nem sabia,
Só
sabia decorado
Era
praga e harizia.”
(Maria)
– “Alma, tu nunca assististe,
Nem
ao menos um momento,
Dentro
dum lugar sagrado
Onde
houvesse um Sacramento,
Que
tu ouvisses meu nome
Com
grande contentamento?...”
(Alma)
– “Senhora, eu passando, um dia,
Numa
casa de oração,
Eu,
vendo o povo lovando
A
vossa consagração,
Eu
ouvi com muito gosto
Com
meus dois joelho no chão.”
(Cão)
– “Já Maria está puxando,
A
coisa se desmantela,
Aquilo
nunca se deu,
Vejam
que mentira aquela!
Eu
vi que esta mulher
Todo
mundo ilude ela!”
“Ela
põe-se a esmiuçar
Puxa
de diante pra trás,
Pega
com tanta pergunta,
Também
isso não se faz,
Até
aparecer coisa
Que
ninguém se lembra mais.”
(Alma)
– “Mãe amada, me livrai
Das
grandes rigoridade,
Sei
que gastei meus dias
Envolvido
em vaidade,
Mas
espero ser valido:
Valei-me
por caridade!”
(Maria)
– “Alma, o que tu me pediste
Eu
não posso prometer,
Se
tivesse em penitença,
Com
razão eu ia ver:
Mas
assim é impossível
Te
salvar, sem merecer.”
(Alma)
– “Rainha, Mãe Amorosa,
Esperança
dos mortais,
Quem
me recorre a vosso nome
Sei
que não desamparais,
Eu
pegando em vossos pés,
Sei
que não largo eles mais.”
(Maria)
– “Pois, alma, demora aí,
Enquanto
eu vou consultar,
Fazer
pedido a meu Filho,
Ver
se eu posso te salvar,
Ver
se teus grandes pecados
Têm
grau de se perdoar.”
(Cão)
– “Como esta tal Maria
Eu
mesmo nem nunca vi:
Uns
pedem por interesse,
Pedem
porque é para si,
Mas
ela pede é pros outros,
Não
se enjoa de pedir...”
(Maria)
– “Meu filhinho, aqui cheguei,
Vim
te fazer um pedido
Para
uma alma que chegou
Lá
do mundo corrompido...
Tu,
não tendo compaixão,
Pra
ela o céu está perdido.“
(Jesus)
– “Mas, minha Mãe, não é assim,
Todos
bem podem saber:
Lá
deixei as Escrituras
Contando
como há de ser...
Os
profetas publicando,
Foi
pra todos compreender.”
(Cão)
– “Isso é outro português!
Quem
se engana é porque quer...
Loucura
grande a do home
Que
se ilude com mulher...
Nem
sei como se defende
Uma
alma tão lheguelhé...”
(Maria)
- “Meu Filho, dê-me a resposta
Pra
ciença do cristão,
Eu
sei que é grande pecado
Não
procurar confissão,
Porém,
meu filho, o pecado
Vem
desde o tempo de Adão.”
(Jesus)
– “Minha Mãe, larguemo esta alma,
Foi
muito ruim criatura...
Se
eu chegar a salvar ela,
Muitas
outra estão segura,
E
eu não posso salvar
A
quem a mim não procura.”
(Maria)
– “Pra isto mesmo, meu Filho,
Foi
vossa ressureição,
Trespassaram
vós no peito,
Foi
Longuim cãs suas mão,
Sofrestes
muito trumento
Na
vossa morte e paixão.”
“Por
vossa misericórdia
Cipriano
se salvou,
Vós
salvaste a outros muito
Pelo
vosso santo amor,
Também
perdoaste Paulo,
Sendo
teu perseguidor.”
“Matia
estava sofrendo,
Vós
avisaste num sonho
Também
livraste da morte
Pai
do senhor Santo Antônio
E
a filha de Cananéia
Da
vexação do demônio.”
“Enfim
sempre perdoaste
A
quem vos pediu perdão;
Longuim,
por se converter,
Prostrou-se
e pediu perdão,
Por
isto lhe deste a vida
E
também a salvação.”
“Quando
os Judeus vos faziam
Grandes
tormentos e horror,
Pedro,
por três vez seguida,
Vos
desconheceu, negou,
Mas
vós lhe deste o poder
De
ser vosso sucessor.”
“Meu
filho, perdoe esta alma,
Tenha
dela compaixão!
Não
se perdoando esta alma,
Faz-se
é dar mais gosto ao cão:
Por
isso abissolva ela,
Lançai
a vossa benção.”
“Se
vós não salvar esta alma
Que
aos vossos pés se apresenta,
O
demônio, sabendo disto,
Agora
é que bem atenta,
E
eu quero que ele hoje
Réle
a teste e quebre a venta.”
(Jesus)
– “Pois, minha Mãe, carregue a alma,
Leve
em sua proteção,
Dia
às outras que a recebam,
Façam
com ela união...
Fica
feito o seu pedido:
Dou
a ela salvação.”
(Cão)
– “Vamos todos nos embora
Que
o causo não é o primeiro,
E
o pior é que também
Não
será o derradeiro...
Home
que a mulher domina
Não
pode ser justiceiro!”
(Jesus)
– “Os demônios se arretirem,
Vão
lá pras suas prisão
Que
é pra não atentar mais
A
todo fiel cristão...
Quem
recorrer ao meu nome,
Eu
garanto a salvação.”
Agora
acabei o verso
Minha
história verdadeira...
Toda
vez que eu canto ele,
Dez
mil réis vem pra algibeira,
Porém
hoje eu dou por cinco:
Talvez
não ache quem queira!
Excelente postagem, meu caro. Os três títulos em que se inspirou Ariano Suassuna — O Castigo da Soberba, O Dinheiro e O cavalo que Defecava Dinheiro, os dois últimos de Leandro Gomes de Barros — foram arrolados por Leonardo Mota na obra Violeiros do Norte. Anselmo Vieira de Souza foi a fonte oral deste poema, que é o auto propriamente dito. Seu autor mais provável é Silvino Pirauá de Lima, talvez o primeiro a escrever romances em versos na linha que seria seguida por outros poetas.
ResponderExcluirValew poeta, seu comentário traz informações bastante relevantes para a compreensão das origens da obra. Abraço.
ExcluirPreciosa informação que me encheu ainda mais de certeza quando fiz uma intensa pesquisa na montagem do espetáculo teatral Auto da Compadecida, do mestre Ariano Suassuna, produzido pelo Grupo de Teatro Circo Sem Pano. Do ponto de vista da feição dramatúrgica Ariano foi beber na fonte de dois grandes poetas da Literatura de Corde, Silvino e Leandro. Muito bem. Do ponto de vista da obra teatral em questão, até hoje, pós 17 anos de estrada de apresentações do espetáculo, alguns não conhecedores buscam explicações acerca do projeto, quando todos têm ma memória a belíssima imagem mostrada pela Globo. Perguntam: É baseado no filme? Respondo: Não. Fiz uma adaptação valorizada em vida pelo próprio Ariano, apenas do texto cru do Auto. O Filme é a junção de três dramaturgias: o próprio Auto, O Santo e a Porca e Torturas de Um Coração (Retirado de A Pena e a Lei). Essa dúvida sobre a nossa montagem recai quase sempre no público presente. Quem quer acessar o nosso link, onde se encontra o espetáculo, vejamos:
Excluirhttps://www.youtube.com/watch?v=TQN-2y2kMq8&sp
Gostaria de acrescentar mais um folheto no qual o agora saudoso Ariano se inspirou para escrever sua obra mais famosa, o Auto da Compadecida: é o cordel As proezas de João Grilo, de autoria do poeta popular João Ferreira de Lima. Sobre o Cavalo que defecava dinheiro há uma dupla autoria, atribuída tanto ao Leandro Gomes de Barros, como afirmou o Marco Haurélio, quanto ao João Martins de Athayde. Segundo pesquisas históricas, este último ampliou a obra de Leandro, enriquecendo-a ainda mais.
ResponderExcluirMuito bem lembrado meu caro... João Grilo (já havia) Chicó um empregado da família em Taperoá.
ExcluirFiquei muito triste ontem, ao saber da morte do Ariano. A cultura nordestina - e brasileira, perdeu um de seus grandes porta-vozes. Perda irreparável...
ResponderExcluirA propósito do cordel, gostaria de compartilhar um site que contém um acervo magnífico com folhetos digitalizados de grandes poetas populares. Para acessar: http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/index.html
ResponderExcluirAbraço e espero ter contribuído...
Obrigada pela indicação desse precioso site. Será de grande valia para minha pesquisa.
ExcluirParabéns pela postagem faz muito tempo que procurava este texto Obrigado!
ResponderExcluirParabéns pela postagem faz muito tempo que procurava este texto Obrigado!
ResponderExcluirObrigada pela indicação desse precioso site. Será de grande valia para minha pesquisa.
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