Por Confeitaria Mag
Jarid Arraes mora em São Paulo, mas nasceu em Juazeiro do Norte, na
região de Cariri, Ceará. Com apenas 24 anos, é autora de mais de trinta
títulos em literatura de cordel. A escritora e jornalista é feminista e
bastante engajada — o feminismo, aliás, está presente em toda sua obra,
que busca combater o machismo, racismo, homofobia e outras formas de
preconceito. Sua atuação política a levou à coluna Questão de Gênero, que assina na Revista Fórum.
Filha e neta de cordelistas, Jarid agora lança seu primeiro livro, As Lendas de Dandara.
A obra mistura ficção, história e um pouco de fantasia e tem
ilustrações de Aline Valek. São dez contos sobre a guerreira quilombola
Dandara dos Palmares, companheira de Zumbi dos Palmares.
Jarid também escreve poesias — uma delas está no primeiro fanzine do
#KDMulheres — e tem se destacado no cenário da literatura marginal e
independente com sua criatividade e postura inspiradora.
CONFEITARIA — As Lendas de Dandara é o seu primeiro livro, mas
você já tem uma história longa com a literatura através dos cordéis.
Como essa história começou pra você?
JARID ARRAES — Com os cordéis, minha história começou quando eu ainda
era bem criancinha. Meu pai e meu avô são cordelistas e xilogravadores,
meu avô é fundador de uma associação de artesãos no Cariri, então eu
cresci nesse contexto, aprendendo desde cedo a valorizar a cultura
popular nordestina e lendo muito cordel – mesmo quando eu ainda não
entendia os temas que eram abordados por eles. Com o passar do tempo, eu
fui nutrindo um amor muito grande pela literatura de cordel, mas eu
confesso que eu não botava nenhuma fé no meu talento. Depois de adulta e
feminista foi que comecei a sentir vontade de escrever cordel; eu já
escrevia textos mais políticos, principalmente falando de questões
raciais e de gênero, e senti a necessidade de abordar esses temas na
literatura de cordel. Meu pai me encorajou e eu escrevi meu primeiro
cordel numa sentada só! Foi o “Dora, A Negra e Feminista”. A partir daí
eu desembestei a escrever cordel, sempre trazendo protagonistas
mulheres, sempre falando de feminismo, do combate ao racismo e outras
formas de discriminação. Me encontrei no cordel engajado.
Com a literatura, como um todo, o amor também é bem antigo. Lembro
que quando eu tinha 8 anos, ganhei um prêmio num concurso de redação. Os
professores sempre elogiavam o que eu escrevia e eu gostava de me
expressar pela escrita, sonhava em ser escritora, mas com o passar do
tempo, sofrendo com muita carga de racismo e machismo, além de uma alta
dose de discriminação contra nordestinos, eu deixei de acreditar que
esse sonho poderia se tornar realidade. É irônico, e infinitamente
bonito, que eu tenha me tornado escritora por meio da luta por uma
sociedade livre desses preconceitos. Foi expressando a minha revolta
contra a discriminação que eu comecei a escrever, que eu me apropriei da
tradição da minha família com o cordel e que eu cheguei aqui, nesse
lugar, onde estou finalmente lançando o meu primeiro livro.
Quais são suas principais referências/influências na literatura de cordel?
Minha maior influência na literatura de cordel é meu pai, Hamurabi
Batista. Porque ele sempre escreveu cordel engajado, tratando de temas
espinhosos, “polêmicos” e políticos, e sempre de uma forma libertária,
sempre rompendo paradigmas e pagando um alto preço por ter essa coragem.
Juntando isso com a educação feminista que minha mãe me deu, eu aprendi
muita coisa boa em termos de literatura e de expressão das minhas
ideias também.
O seu processo criativo para escrever cordéis, poesias e os contos do livro foram/são muito diferentes?
Muito diferentes, nossa! Com o cordel, eu me expresso de forma muito
crua, eu geralmente escrevo quando estou irritada e precisa colocar pra
fora a minha indignação. O cordel me dá esse espaço totalmente livre e
cru para usar as palavras que eu quero e moldá-las de acordo com meus
sentimentos e intenções, sem me preocupar com norma culta, com
regrinhas. No cordel, é até melhor quando eu uso expressões bem
caririenses, quando mexo numa palavra pra que ela fique “errada”, mas
permita uma melodia do cordel mais fluida. Já com o livro, eu não pude
terminar tudo numa sentada só. Eu tive que reler, revisar, editar e
depois dar um tempo para reler e revisar de novo. Eu tive que contar uma
história em muito mais páginas e palavras do que nas 28 estrofes que
geralmente uso no cordel. Além disso, eu tive que entrar em contato com
questões íntimas minhas e que minha personagem trouxe para a superfície;
eu tive que trabalhar isso tudo com muita atenção e dedicação, pra que
minha personagem não fosse prejudicada. No fim, fiquei muito orgulhosa
do trabalho que eu desenvolvi. Mas com certeza a experiência de escrever
um cordel e a experiência de escrever um livro são bem diferentes.
Assim como é diferente escrever um texto pra Revista Fórum ou uma
matéria jornalística — o mais gratificante é que eu gosto muito de jogar
com esses papéis e linguagens diferentes. Torna tudo mais intenso.
Você optou pelo caminho da autopublicação, começando com o e-book
do livro e agora partindo também para a versão física. Foi uma escolha
para ter mais autonomia em relação ao processo/resultado ou você antes
havia tentado o caminho convencional, mas não se sentiu acolhida pelo
mercado editorial?
Eu quis seguir independente porque precisava de total autonomia e
liberdade para meu primeiro livro. Sabe, eu venho do cordel e no cordel
eu faço tudo sozinha, eu escrevo, eu monto, eu distribuo. E uma
personagem tão incrível como Dandara merecia uma voz verdadeira, algo
que nascesse e saísse pelo mundo da forma mais genuína possível. E pra
falar de algo tão pesado como a escravidão no Brasil, eu não queria
ninguém bulindo em nada e nem tentando transformar Dandara num objeto
enquadrado e reduzido. É um desafio enorme a autopublicação,
principalmente porque não tenho dinheiro mesmo, mas me esforcei muito,
abri mão de várias coisas e fiz de tudo para concretizar esse objetivo.
O livro foi ilustrado pela Aline Valek, escritora e ilustradora
feminista. Como foi o processo? Vocês escolheram juntas quais trechos
seriam ilustrados?
Nossa, a Aline é simplesmente maravilhosa! A gente se conheceu por
volta de 2012, eu acho, no meio do ativismo feminista. A sensação que eu
tenho é de que nem sei como a conheci, de tão natural que foi nossa
aproximação. Mas me identifiquei muito com os posicionamentos políticos
que ela tinha, fomos nos falando, fui conhecendo mais o trabalho dela e
observei que em suas ilustrações existia uma real diversidade de corpos e
características físicas. Gostei muito da forma como a Aline desenhava
mulheres negras. Então, quando tive a ideia do livro sobre Dandara,
imediatamente pensei nela. A Aline veio aqui em casa, em São Paulo, eu
falei pra ela sobre o livro, disse que já tinha algumas cenas que
gostaria de ilustrar em mente e juntas pensamos na aparência de Dandara,
cada detalhe, como o tom de pele escuro, o cabelo sempre visível, o
corpo não-magro. Depois eu mandei pra ela as cenas de cada capítulo que
eu gostaria que ela desenhasse e ela me mandou várias versões e ideias
para cada uma delas. Foi incrível, a gente se deu muito bem, acho que
trabalhamos maravilhosamente juntas e depois de tudo o que ela fez para
me ajudar, minha admiração por ela está mais de oito mil vezes maior.
E como foi participar de todas as etapas da publicação — edição, revisão, diagramação?
Foi muito enriquecedor, principalmente porque tive a Aline Valek como
mestra e também a ajuda do meu namorado com a revisão. A Aline me
auxiliou muito, teve muita paciência e me orientou de diversas formas.
Sou muito grata porque tive esse apoio incrível. Foi uma experiência
toda cheia de dramas e depois de alegrias. Fiquei satisfeita com o
resultado, mas prefiro dizer que não entendo de edição, nem de revisão,
nem de nada além de escrever o que eu preciso escrever. No entanto,
talvez eu faça de novo.
Na sua opinião, quais outras autoras negras e contemporâneas
merecem mais espaço no mercado editorial e na cabeceira dos leitores?
Eu acho que há muitas jovens negras super talentosas e que escrevem
bem, mas que muitas vezes não conseguem compartilhar suas obras porque
há uma carga terrível de misoginia e racismo enfiando insegurança em
suas mentes. Muitas meninas me enviam poesias e textos com o maior medo
do mundo e falam que nunca mostraram nada para ninguém. Acho isso
realmente terrível, um reflexo perverso de como a nossa sociedade exclui
e ataca mulheres negras. Por isso, citar dois ou três nomes é
pouquíssimo. Cito porque é preciso, mas também precisamos mudar toda a
estrutura. Ontem ganhei o livro Caravana, da Carina Castro, e devorei
tudo na mesma noite. Quanto talento! Também sempre cito a Ana Maria
Gonçalves, autora de um dos livros que mais mexeram comigo, o Um Defeito
de Cor. E uma companheira de militância, a Karla AgreSilva (olha o
sobrenome que a mulher usa!), que escreve para remexer na ferida,
emociona, faz qualquer pessoa se sentir incomodada, mas que ainda não
foi publicada.
Você participou do primeiro fanzine do movimento #KDmulheres, que
luta por maior representatividade das mulheres na literatura. Como vê o
mercado editorial brasileiro hoje em relação às mulheres de maneira
geral?
O mercado editorial brasileiro, assim como os leitores brasileiros e
toda a sociedade brasileira, está contaminado por machismo, por racismo e
por outras questões altamente problemáticas e excludentes. Não só
porque barra escritoras extremamente talentosas, mas até mesmo quando
elas são publicadas o negócio é de chorar. Vi capa de livro de feminista
com mulher toda no padrão, magra e loira, algo totalmente incompatível
com o assunto do livro e com a própria autora, mas que foi feita daquela
forma para chamar atenção nas prateleiras às custas da objetificação e
padronização feminina. E isso porque ela teve sorte de ser publicada,
né? Se não fossem as editoras pequenas e voltadas para obras
especificamente de pessoas negras, por exemplo, não conseguiríamos achar
nem sequer um livro infantil com uma personagem negra e de cabelos
crespos. Pelo contrário, livro que ensina que cabelo liso é mais bonito
tem aos montes! As editoras se interessam por aquilo que está no padrão
e, por isso, tem mais chances de vender. Mas, nossa, como estão
enganados! Desde que anunciei o meu livro, tenho recebido uma chuva de
e-mails e mensagens de pessoas interessadas já querendo comprar, por
isso que decidi lançar também a versão física.
Durante a última Feira Literária Internacional de Paraty, a Flip, as mulheres — as poucos mulheres convidadas
— foram as que mais venderam livros e que mais fizeram que o evento
repercutisse nas redes. Viva Karina Buhr, viva #KDmulheres e Aline
Valek. A gente prova que essa lógica machista e racista está equivocada,
mas o mercado editorial brasileiro terá coragem de sair de suas
caixinhas fedidas de tão ultrapassadas? Vamos jogar esse disquete fora,
botem no museu e abracem a pluralidade, a diversidade brasileira.
As Lendas de Dandara será lançado oficialmente no dia 23 de julho na
Casa de Lua, em São Paulo. “Vai ter o evento com roda de conversa comigo
e a Aline Valek, exposição das ilustrações, bebidinhas grátis, sorteio
de cordéis e outras coisas legais”, convida Jarid.
Mais informações sobre o livro e o lançamento aqui.
Texto Por: Fabiane Secches para Confeitaria.
A Confeitaria é uma publicação independente sobre comportamento, literatura, cinema, design, artes e cultura, formada por um coletivo de autores de lugares, formações e interesses diversos, mas com um denominador em comum: a vontade de contar histórias e a generosidade em dividi-las com a gente.
Fonte: mode.fica
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