É de um celular em São Bento (PB), município do sertão paraibano a 375 quilômetros de João Pessoa, que o pedagogo Carlos Fernandes, 34, posta suas rimas e versos de cordel no Instagram. Com 3.300 seguidores, o perfil Poesia no Tamborete é um reflexo dos novos tempos para a literatura de cordel, que ultrapassou os limites das feiras do Nordeste para invadir a tela do smartphone.
Na rede social, são mais de 66 mil postagens com a hashtag #cordel. Além de Fernandes, outros jovens poetas aderiram à plataforma para renovar a tradição das rimas populares, levando para a internet a herança recebida dos avós nordestinos.
No perfil de Fernandes, a língua é o "nordestinês". Ele diz se inspirar na forma singular do nordestino se comunicar quando decide publicar algo no Instagram. Quando criança, o poeta lia cordéis para os avós analfabetos à luz de uma lamparina, onde nem energia elétrica havia. Hoje, se orgulha quando fala que seus versos ultrapassaram fronteiras por meio do celular.
"É a forma de modernizar a literatura de cordel, às vezes muita gente não tem acesso ao folheto. Ao publicar meus versos, estou divulgando meu trabalho, e as pessoas estão lendo, estão consumindo"
Carlos Fernandes
Os posts dos novos poetas populares, em geral, seguem a mesma métrica e estrutura de uma poesia em cordel impressa, com seis ou sete versos. O design também lembra os folhetos vendidos nos mercados das cidades do interior nordestino. O humor com crítica social e política, marcas do cordel em papel, continuam sendo retratados nas mídias digitais. Há perfis dos mais variados tipos, desde histórias em botecos a enredos que enaltecem o Nordeste.
Filho de cearenses, o jornalista Ailton Mesquita, 33, tem quase 60 mil seguidores no perfil Um Repente por Dia. O primeiro contato com o cordel foi na escola, quando a professora de português fez um trabalho sobre o tema, e os versos e rimas vieram de forma espontânea, lembra ele, que mora na capital federal. "Brasília também tem muito de Nordeste, o sotaque daqui é uma mistura de vários. Mesmo não sendo nordestino, acabo tendo essa aproximação", diz ele.
A inspiração para a página surgiu após postar uma reclamação em versos no Facebook, destinada a uma casa de câmbio. O post viralizou, e a empresa decidiu responder o questionamento também em forma de cordel, concedendo descontos na compra de moeda estrangeira para Mesquita. Com o sucesso e a ajuda de colegas designers, criou o perfil no Instagram. "Vi que tinha como brincar com isso, com humor no cordel."
Manuela Maia, professora da UEPB (Universidade Estadual da Paraíba) e pesquisadora de cordel há 13 anos, acredita que esse movimento da poesia popular nas redes sociais dá visibilidade à literatura nordestina em um espaço ainda mais heterogêneo como é o caso do Instagram, mantendo viva a tradição do cordel. Isso faz com que surjam novos poetas fora do Nordeste, com motes mais atuais, afirma.
"É um movimento de resistência e de registro. O que muda é o dispositivo, a forma de ler. É a visão do povo, que continua na oralidade e na escrita desses novos poetas", resume a especialista. Para Mesquita, o espaço das redes permite levar poesia até para quem não conhece literatura de cordel. "Na internet, você encontra muita arte. É o contato que muitas pessoas nunca tiveram antes", ressalta.
Resistência e crítica popular
Como manifestação da cultura popular, o cordel nem sempre foi bem visto por intelectuais, que viam a literatura que se espalhava pelo Nordeste como poesia "analfabeta", afirma o presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, Gonçalo Ferreira da Silva. "Eles [os intelectuais] não botavam muita fé no cordel. Percebendo a força de inteligência dos cordelistas, preferiam evitá-los e tachá-los de semianalfabetos porque não sabiam produzir texto", lembra o poeta.
Até pelo cunho popular, o cordel sempre foi instrumento de luta e resistência no Nordeste, usado por camponeses, por exemplo, para denunciar os políticos da região, as arbitrariedades de autoridades e o cangaço. "Quando você conhece a história e a riqueza do cordel a partir de poetas portugueses, como Camões, Gil Vicente, você pede desculpas [pelas críticas]", diz Ferreira da Silva.
Recentemente, após o presidente Jair Bolsonaro chamar os governadores do Nordeste de "paraíba" - termo pejorativo usado em partes do Sudeste - o cordel fez valer seu histórico de denúncia e resistência em versos de crítica social no Instagram. O poeta Ailton Mesquita conta que chegou a perder seguidores pelas postagens em seu perfil. "Falar do Nordeste é assumir um lado, o lado da diversidade e do respeito", afirma, contando que foi chamado até de comunista nos comentários.
Versos ao vivo
Para vender seus folhetos nas feiras livres, os poetas populares usavam da oralidade para narrar seus enredos. Dessa forma, conquistavam a plateia atenta. É o que passou a fazer - só que em rede nacional - o cordelista e declamador Bráulio Bessa no programa "Encontro com Fátima Bernardes", da Globo.
O sucesso de Bessa contribuiu para motivar outros poetas a fazerem literatura de cordel nas redes sociais. Aos 24 anos e apaixonado por fotografia, o jornalista paraibano Luís Eduardo Andrade criou a página Verso e Foto, onde posta fotos acompanhadas de um versinho. "Uma vez por semana eu também publico uma poesia completa em vídeo. Não esperava esse sucesso", conta.
Nascido em João Pessoa, Andrade passou parte da infância e da adolescência no município de Serra Redonda (PB), a 105 quilômetros da capital. É de lá e da relação com a família do interior que busca inspiração para os versos e rimas que publica. Nessa "brincadeira", a página já alcançou mais de 10 mil seguidores. O chapéu de vaqueiro, que usa desde os tempos de criança, virou uma característica em seus vídeos. "Na última vez que estive em Campina Grande (PB), algumas pessoas até me reconheceram por causa do chapéu".
Quem também ganhou notoriedade com posts em vídeos no Instagram foi o bacharel em Direito Hugo Novaes, 31, de Maceió. Hoje, com mais de 191 mil seguidores, ele é destaque em diversas feiras literárias pelo país e faz participações especiais no programa "É de Casa", da Globo.
Em 2016, após o Supremo Tribunal Federal (STF) proibir a vaquejada no país, Hugo decidiu postar um vídeo onde criticava a decisão em formato de rima. Na época, como o Instagram só aceitava vídeos de até um minuto, a poesia foi compartilhada pela metade. Foi aí que teve a ideia de criar o perfil 1 Tema, 1 minuto, 1 Poema, com poesias pautadas por assuntos escolhidos pelos internautas e narradas no limite máximo de um minuto. A página passou de 1.000 seguidores para 10 mil em apenas uma tarde.
Diversidade nos cordéis
As redes sociais também deram visibilidade ao trabalho de mulheres cordelistas num universo dominado por homens. Atual presidente da Academia Sergipana de Cordel, a pedagoga Izabel Nascimento diz que as dificuldades na literatura de cordel não são diferentes de outras áreas. "Mesmo sendo crescente o número de mulheres, [o cordel] é predominantemente masculino. A dificuldade que enfrentamos é a mesma, com preconceitos e machismo", diz.
Filha de cordelistas, Izabel declama críticas por mais igualdade no próprio perfil para um público de 3.100 seguidores, em posts que foram reunidos em um livro. Apesar do sucesso online, ela não deixa de publicar seus próprios folhetos. "O cordel existe até hoje porque tem essa capacidade de se transformar. Tem uma tradição, não podemos abandonar. As redes sociais ampliam, mas não acabam com os folhetos", defende.
A desigualdade de gênero que a pedagoga critica está refletida na própria formação da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, sediada no Rio de Janeiro. Das 40 cadeiras, 36 são ocupadas por homens". O patriarcalismo no Nordeste também era um fenômeno no cordel. Mas há um movimento de mulheres que começam a ter voz nesses espaços", diz a pesquisadora Manuela Maia, da UEPB.
Uma dessas vozes é a da poetisa e cordelista Jarid Arraes, 28, de Juazeiro do Norte (CE). Uma das novas expoentes do cordel pelo país, Jarid levou seus versos para o palco da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) como convidada oficial na edição deste ano.
Nascida no sertão do Cariri, no Ceará, ela é filha e neta de cordelistas. As poesias de Jarid são dedicadas principalmente às mulheres negras, a exemplo da Coleção Heroínas Negras da História do Brasil. Na obra, são resgatadas biografias de negras que marcaram a história brasileira, como Antonieta de Barros, Carolina Maria de Jesus, Tereza de Benguela, Laudelina de Campos, Dandara, entre outras. Além de trazer a mulher para o centro das narrativas do cordel, poetas como Jarid contribuem para resgatar o gênero da literatura brasileira.
Um cordel para contar a história do cordel
Foi através dos portugueses
Vindos na colonização
Que o Cordel chegou no Brasil
Instalando-se na nação
Por volta do século 16
Conquistando corações
Vindos na colonização
Que o Cordel chegou no Brasil
Instalando-se na nação
Por volta do século 16
Conquistando corações
Irradiando na Bahia
Passou de mão em mão
No Nordeste encontrou refúgio
Para perpetuação
Em folhetos eram contados,
narrados com emoção.
Passou de mão em mão
No Nordeste encontrou refúgio
Para perpetuação
Em folhetos eram contados,
narrados com emoção.
A década de 1890
é o marco da inauguração
Do cordel brasileiro
Tendo na primeira publicação
de Leandro Gomes de Barros
Sua aparição.
é o marco da inauguração
Do cordel brasileiro
Tendo na primeira publicação
de Leandro Gomes de Barros
Sua aparição.
O povo todo já sabia
das histórias de Lampião
Narradas nas rimas
como meio de comunicação.
O cordel era o jornal
da época de então.
das histórias de Lampião
Narradas nas rimas
como meio de comunicação.
O cordel era o jornal
da época de então.
Mesmo com a tecnologia
Os poetas não deixam de narrar
Suas lutas e vivências
pela tela do celular
mantendo vivos o cordel
e a cultura popular.
Os poetas não deixam de narrar
Suas lutas e vivências
pela tela do celular
mantendo vivos o cordel
e a cultura popular.
*Com informações da Academia Brasileira de Literatura de Cordel e Fundação Casa de Rui Barbosa
Fonte : TAB UOL
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