Cortando o véu do tempo, desde as eras de reinos pouco encantados e de um além-mar misterioso nos mapas, a poesia constrói universos e relata acontecimentos importantes. Soberanos queriam perto de si aqueles que versavam, verdadeiros heróis das palavras. O cordel bebeu em fontes longínquas e é uma das manifestações populares mais ricas que o Brasil possui, mas essa produção chega a conta-gotas na Biblioteca Nacional (BN), o grande arquivo da escrita brasileira. Em parceria com a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) e outras instituições, a Biblioteca lança a campanha do Depósito Legal para aumentar seu acervo cordelístico.
A campanha será oficialmente lançada em janeiro de 2012, mas já apresenta resultados através da parceria com a ABLC. Aos poucos, cordéis de todo Brasil chegam às mãos dos funcionários da BN para complementar o acervo existente, que conta com dois mil folhetos. A quantidade é pouca, levando em conta que muitos artistas produzem centenas de folhetos. O acervo da ABLC, por exemplo, chega a 13 mil títulos, sendo 6 mil já catalogados. Já a Fundação Casa de Rui Barbosa possui 8 mil folhetos.
Teoricamente, toda essa produção deveria estar na BN por determinação do Depósito Legal, segundo as leis 10.994, de 14 de dezembro de 2004, e 12.192, de 14 de janeiro de 2010, que obrigam editoras, jornais, músicos e todos aqueles que publicarem algo no Brasil (exceto propagandas e folhetos) a deixarem uma cópia de sua obra na instituição. Isso vale também para obras digitais, CDs e DVDs. A intenção é que a memória intelectual e artística brasileira seja preservada na BN, que possui mais de 10 milhões de artigos, fora os periódicos. O acervo bibliográfico da instituição pode ser acessado pela internet.
Segundo a bibliotecária Alessandra Silveira de Moraes, funcionária do setor de Depósito Legal, a expectativa é de aumentar em mais de 100% o acervo da Biblioteca e abraçar os autores independentes. O depósito pode ser feito pelos Correios ou pessoalmente no departamento. Não há taxas para entrega do material, mas os custos de envio, caso o autor opte por postar o material, ficam a cargo do remetente.
“A literatura de cordel é de um peso muito significativo na cultura nacional, particularmente no Nordeste e, se a ideia da coleção é ser nacional, é preciso captar as obras de diferentes áreas. Existe uma expectativa de fazermos exposições, mas ainda está em planejamento”, conta.
Cordel na academia: santuário das obras
No bairro de Santa Teresa, no Centro do Rio, fica a Academia Brasileira de Literatura de Cordel. No espaço, do tamanho de uma garagem média, cabe uma infinitude de folhetos que versam sobre os mais diversos fatos. O estandarte ao fundo confere o espírito lúdico que o cordel carrega em si e o som do violão de Dona Mena, a madrinha dos poetas, como é chamada Maria do Livramento da Silva, de 61 anos, completa o encantamento.
A história da Academia se confunde com a de Dona Mena, que ia para a Feira de São Cristóvão armar um tabuleiro com cordéis. De sacolas nas mãos, lá se formou o embrião da ABLC. Tímida, em seu canto, ela sorri ao lembrar da rotina de antigamente.
“Eu pegava dois ônibus com sacolas cheias de cordéis. Antigamente, a feira era boa, era do lado de fora do pavilhão”, diz a cearense, que ganhou o título do poeta Rodolfo Coelho Cavalcante, em 1986. De acordo com o presidente da ABLC, Gonçalo Ferreira da Silva, de 73 anos, ela foi tão importante na história da academia que ganhou o diploma de madrinha dos poetas do Brasil em solenidade onde estavam presentes o então presidente da República, José Sarney, e o presidente da Casa do Cantador, Gonçalo Gonçalves Bezerra.
“Ela fica escondidinha, mas sabe de sua importância. O pessoal vem da ‘baixa da égua’ (termo para designar lugar distante) só para falar com ela”, comenta Gonçalo.
A academia foi fundada em setembro de 1988 com 40 cadeiras de membros efetivos. De início, Gonçalo encontrou muita resistência entre os próprios poetas, que achavam o meio acadêmico elitizado demais para a literatura de cordel. Com persistência, o cearense de Ipu, que chegou ao Rio de Janeiro em 1954 e começou a escrever cordel em 1978, baixou a guarda de muitos opositores.
“Eu recebi tantas ofensas! Chegava nas praças e os repentistas faziam sextilhas agressivas contra mim, depois encostavam a viola e diziam ‘você já viu academia para cordel?’, no que eu respondia ‘no mínimo você não entende o sentido da palavra academia’”, conta.
Mensalmente, chegam 200 títulos novos na ABLC, a maioria de cordelistas estreantes. Poetas consagrados têm optado pela compilação de suas obras, lançando cordéis em formato de livros, com distribuição editorial mais forte. A parceria com a Biblioteca Nacional procura corrigir um grande lapso que os brasileiros cometem contra sua própria cultura, deixando muitas vezes que estrangeiros falem com mais propriedade sobre o cordel.
“Não é brincadeira, a Biblioteca do Congresso Nacional dos Estados Unidos está com quase 10 mil títulos brasileiros e, no coração criador da literatura de cordel, ou seja, no Brasil, temos apenas 2 mil. A França é famosa por pesquisar cordel. Eu nunca tinha esbugalhado tanto os olhos quando vi o conhecimento que os americanos têm sobre a cultura brasileira quando estive lá recentemente. Se a gente não tiver esse cuidado de registrar o valor da literatura de cordel rasgando os tempos, ela terá pouca graça e as pessoas não conhecerão esta riqueza de nossa história”, relata o presidente da instituição.
Cordeltecas
Um dos grandes feitos da ABLC é a disseminação de cordeltecas pelo Nordeste, 15 atualmente. O espaço reservado nas bibliotecas de várias cidades para o cordel faz pulsar a cultura popular na região. Nascido em Campo Redondo, no Rio Grande do Norte, Sepalo Campelo, de 67 anos, vislumbra outros espaços para distribuição dos folhetos: as bancas de jornal.
“Eu penso em desenvolver um trabalho, junto com meus colegas, de explorar esses pontos, inclusive locais turísticos. Em todas as capitais do Nordeste eu comprei cordéis e a gente não vê isso aqui. Isso é um trabalho que também tem que partir dos poetas que desejam ver sua obra divulgada”, revela o poeta.
No Rio de Janeiro desde 1961 e há 30 anos morando entre Niterói e São Gonçalo, Sepalo descreve como conheceu o cordel ainda na infância. Na feira de sua cidade, embaixo de uma árvore, via um poeta abrir a mala e revelar os cordéis que trazia para cantar no megafone. A poesia o escolheu para trazê-la ao mundo desde cedo, mas somente em 1985 ele estreou com “O Rio que nós amamos”.
“Na minha casa, era luz de lamparina. Como acordávamos muito cedo, às 18 horas já era noite e a gente tinha que fazer uma horinha antes de ir para a rede. Nesse tempo, os mais idosos contavam história e quem sabia ler, como eu, lia os cordéis para todo mundo à luz de lamparina. Foi assim que passei a gostar de cordel”, conta.
João Batista de Melo, de 73 anos, lamenta que o berço do cordel esteja dilacerado, como diz, e que os novos poetas da região tardem a nascer. De Itabaianinha, no interior de Sergipe, para Itaipu, Região Oceânica de Niterói, foram muitos anos de trabalho e momentos difíceis. Quando seu pai morreu, João tinha 12 anos. Hora de abandonar a enxada na roça, onde ouvia seu pai cantar os cordéis que decorava aos sábados, no dia de feira.
“Depois que meu pai morreu, zarpei com minha família para uma cidade média de Sergipe e encontrei uma professora que ensinava cordel na última sexta-feira do mês, valendo nota. Isso me estimulou muito. Já era bancário em Aracaju quando participei de um concurso e ganhei um rádio enorme como prêmio. Vim morar em Itaipu na década de 1990, quando me aposentei e, quando deu uma brechinha, me danei a fazer cordel por aqui”, diz João, que expõe suas obras nos fins de semana, no Campo de São Bento.
Fonte: http:www.ablc.com.br
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